Irmãs Stanford: O Perfume da Rosa



CAPÍTULO I

Inglaterra, 1856.

O horizonte apresentava nuances em tons de vermelho. O pôr-do-sol daquela região de Gloucestershire era o mais belo já visto em toda a Inglaterra. A tarde esvaia-se enquanto a elegante carruagem percorria, aos solavancos, a acidentada estrada campestre. Lady Elizabeth Anne Stanford, Condessa de Langfor, olhou para a irmã mais nova e deixou escapar um longo suspiro de impaciência.
— Ainda faltam mais de uma hora para chegarmos. — reclamou. — Será que seremos bem recebidas pela Duquesa de Beaufort? — um frio percorreu o seu corpo.
Samantha, assustada, se limitou a encarar a irmã, que a aconchegou nos braços como se transmitisse força. Em menos de seis meses suas vidas haviam mudado de forma repentina. Perdera os pais em um acidente de carruagem, quando eles voltavam de Londres a propriedade de campo em Langfor Park. E agora não tinham mais ninguém.
— Vai ficar tudo bem Sam. A duquesa deve estar a nossa espera. — tentou parecer animada.
Os advogados responsáveis pelo testamento procuravam o primo distante do conde que morava na América. Ele deveria assumir a propriedade e o título que não possuíam herdeiro direto. Passaram-se meses. O novo conde ainda não havia sido encontrado.
Elizabeth ajeitou os cabelos loiros, alisou a capa de viagem e observou a paisagem que se formava a sua frente.
Campos verdes surgiam, frondosas árvores, flores do campo coloridas e perfumadas. Mais à frente uma linda construção se erguia, Badminton House, o grande palácio rural que se tornara a principal sede dos duques de Beaufort desde finais do século XVII. A visão estimulante trazia, ao mesmo tempo, deslumbramento e medo.
— Sam, tente se lembrar de tudo que nossa mãe nos ensinou. — sussurrou. — Nunca freqüentamos a sociedade, porém saberemos agir de acordo. ­— comentou mais animada.
De repente, foram empurradas para o lado direito da carruagem, que quase tombou.
— O que é isso! James? — Elizabeth chamou. Sua voz soando tensa.
— Sim milady, não se preocupe. — gritou James lá de fora. — Quebrou a roda da carruagem — completou.
Enquanto James tentava realizar o conserto, Elizabeth desceu da carruagem. Precisava saber o que seu destino lhe reservava o mais rápido possível.
— Vamos Samantha. — chamou. — Estamos quase em Badminton House. Podemos ir a pé.  Este lugar é incrível. — analisou ao redor.
— Gosto da idéia de sair dessa carruagem. — animou-se Samantha.
Andaram por pouco tempo. O ar puro e o perfume das flores traziam boas recordações de seu lar. A suave brisa que soprava ao sul agitava-lhe os cabelos, como uma doce carícia.
Aproximaram-se da porta do castelo. Elizabeth levantou a mão trêmula, a sensação de que seu destino fora selado se apossou de sua alma. Obrigou-se a aprumar o corpo, em seguida bateu.
 O mordomo uniformizado empertigou-se ao abriu a porta. Apenas o leve franzir de sobrancelhas mostrava o seu descontentamento.
Elizabeth analisou a irmã e si mesma. Sujas e amarrotadas, sabia que não tinham a melhor das aparências.
— Gostaria de ver a Duquesa de Beaufort. — disse Elizabeth em tom majestoso. — A duquesa nos aguarda ­— comentou, desejando que fosse verdade.
— A quem devo anunciar? — indagou o mordomo pomposo.
— Elizabeth Anne Stanford, Condessa de Langfor, e sua irmã, Samantha Eleonor Stanford. — disparou.
— Aguardem no Salão Amarelo, milady. ­
Elizabeth percebeu a expressão de dúvida no rosto do mordomo ao conduzi-la.
Desconfortável, alisou seu discreto traje preto. Ponderou que não poderia fazer nada em relação a sua vestimenta. Afinal, sempre viveram no campo e os pais não possuíam muito dinheiro, apesar do título. A mãe preocupava-se porque Elizabeth já aos dezenove anos deveria debutar na próxima temporada. O debut requeria uma considerável soma de dinheiro. Seria necessário um guarda roupa completo, além do dote a ser oferecido ao futuro marido.  Esses pensamentos trouxeram a familiar sensação de desagrado, então, tratou de desviar a atenção dos seus dilemas interiores e observou o ambiente a sua volta.
Encantou-se com Salão Amarelo. O seu nome vinha da graciosa decoração: a mistura de branco, amarelo, dourado, de delicadeza surpreendente. Tapeçarias elaboradas revestiam o piso, peças em porcelana espalhadas pelos móveis e flores enfeitavam o ambiente.
— Sua Alteza, Ruth Anne Gilbert, Duquesa de Beaufort. — anunciou o mordomo.
Elizabeth observou a duquesa, em ar majestoso, entrar no salão. Apesar da idade, em torno dos 60 anos, conservava sua beleza de compleição pequena. Os olhos, azul intenso, pareciam frios, como gelo. Vestia-se com o esmero que a sua posição requeria. Os cabelos brancos e brilhantes presos em um coque elegante. Os seus movimentos precisos e graciosos também confirmavam sua nobreza.
— Boa tarde Alteza. — disse Elizabeth em reverência. — Meu nome é Elizabeth Anne... — parou de repente ao ver a duquesa estender a mão em sinal de protesto.
— Eu sei quem vocês são. — disparou. — Só não entendo por que estão em minha propriedade. — impacientou-se. — Não vejo sua mãe há anos. Desde que saiu de minha proteção e foi viver enclausurada naquela casa de campo que nem me lembro o nome.
— Langfor Park Alteza. — Samantha interrompeu a conversa.
A duquesa reparou pela primeira vez na jovem calada que se escondia atrás da irmã mais velha. Aos 16 anos, Samantha possuía beleza delicada, cabelos pretos e olhos verdes que lembravam pedras preciosas. Ela já demonstrava a beleza que surgiria. Naquele momento seu olhar expressava receio e confusão. Ao contrário da irmã, que sustentava a postura majestosa, apesar das roupas simples e sujas. Possuía estatura mediana, corpo bem proporcional, cabelos loiros dourados e olhos em tom de mel que pareciam mudar de cor de acordo com seus sentimentos.
— Vejo que não recebeu a carta do nosso advogado, Alteza. ­— disse Elizabeth que já esperava o pior. — Nossa mãe está morta, o nosso pai também. — percebeu que sua voz transmitia indignação e pesar ao mesmo tempo.
Uma rápida emoção passou pelo semblante da duquesa, porém foi difícil definir, pois logo ela se recompôs. Pesar? Culpa? Remorso?
— Trouxe a carta que nossa mãe nos escreveu. Havia outra destinada a Sua Graça, porém creio que tenha sido extraviada. — estendeu a carta, as mãos trêmulas, o sorriso forçado.
Fechou os olhos quando a duquesa ergueu a carta. Mentalmente recitou o conteúdo gravado em sua memória:


Amadas filhas,

Se vocês lerem esta carta é porque eu e o seu pai não estamos mais presentes. Deus nos levou ao encontro Dele. Estamos bem. Tenham certeza disso.
Nós amamos vocês e queremos que sejam felizes, por isso, prestem atenção: o próximo conde, o primo distante do seu pai, está na América. Perdemos o contato com os parentes distantes, sabemos apenas que é importante e rico. Nosso advogado tentará encontrá-lo.
Assim que ele chegar, se não for casado deverá ser providenciado acompanhante adequada a vocês. Seria interessante se você, Elizabeth, se casasse com ele. Eu sei que sempre disse que deveriam se casar por amor, mas me preocupa o futuro de vocês.
 De qualquer forma explique nossos costumes, a importância de participarem da sociedade e de arranjarem bons casamentos. Ele não deve impedir isso. Vocês devem debutar e arranjar maridos sim, não questione isso Elizabeth. Cuide de sua irmã, que no devido tempo seu futuro também seja traçado.
Se o conde não for encontrado dentro de seis meses, procure a Duquesa de Beaufort. Nunca mencionei a duquesa porque doía falar. Há muito tempo atrás, ela foi mais que madrinha para mim, foi uma mãe e a decepcionei. No entanto, sei que ela irá ajudá-las.
Casei-me com seu pai que possuía o título inferior ao pretendido, não seria tolerado nenhum abaixo de duque. Casei-me por amor. Ela nunca me perdoou por ter jogado meu destino fora, porém na verdade ela nunca entendeu que seu pai sempre foi o meu destino. Nunca deixei de amá-la. Sinto não ter dito isso.
Amo vocês. Fiquem com Deus.                                       
                                                                                        Mamãe e papai.

Elizabeth, emocionada, examinou a duquesa, que se apoiou no encosto da elegante poltrona Luís XV, contornou-a e desabou sem nenhum resquício da postura majestosa. Os olhos de azul intenso refletiam tristeza profunda, o rosto demonstrava pesar e arrependimento.
  — Georgina foi a filha que nunca tive, talvez por isso tenha sido tão intransigente. — murmurou triste. — Você se parece ela, Elizabeth. — analisou.
    — Vejo que estão cansadas. Precisam descansar o mais rápido possível. — recuperou a compostura. De repente pareceu animada.  — Smith, acompanhe-as aos seus aposentos, Elizabeth deverá ficar no aposento dourado. Samantha ficará no aposento rosa.  — O jantar será servido às vinte horas no Grande Salão. Não se atrasem. Por aqui, os horários do campo são rígidos. ­ — se levantou graciosa e se dirigiu à porta, um estranho sorriso estampado no rosto.
Ao entrar no aposento indicado Elizabeth ficou maravilhada. A janela aberta iluminava o ambiente, a cortina balançava ao vento. Deteve-se na grande cama em dossel, nas colunas douradas em suas laterais, nas flores amarelas distribuídas pelo aposento. O quarto possuía ante-sala que dispunha de mesa acompanhada de duas cadeiras, no canto a direita o sofá de delicada estampa floral, já à esquerda, a área destinada à higiene pessoal, com biombo e banheira de porcelana estilo francesa.
Logo, o lacaio trouxe seus pertences, sinal de que a carruagem fora consertada. — respirou aliviada. A camareira, acompanhada de mais duas mulheres, trouxe vasilhas com água.
  — Meu nome é Silvia, milady. — disse em reverência. — Serei sua camareira particular, se me permitir. — Sua irmã também será cuidada. — disse ao ver a preocupação no rosto da jovem lady. — Venha, o banho está pronto.
Depois de ter tomado banho, escolheu outro vestido preto, porém em melhores condições que o anterior. Silvia a auxiliou a vestir-se e penteou seus cabelos. Depois de pronta, parecia uma nova pessoa, mais disposta e animada. Então, seu estômago roncou. Riu alto pela primeira vez em seis meses. E dando de ombros, decidiu descansar antes do jantar.
Várias horas depois, Elizabeth acordou. O delicioso aroma de carne e especiarias preenchia o ar. Levantou se dirigindo a ante-sala, onde a substanciosa refeição a aguardava. Feliz pela inesperada consideração e faminta comeu com vontade. Depois voltou a dormir, já passava de meia noite e precisaria de toda sua energia no dia seguinte.
Enquanto isso, Ruth escreveu uma carta, lacrou utilizando o brasão da família Beaufort e ordenou que o criado entregasse o mais depressa possível. Sorriu. O plano se formara e a primeira peça do tabuleiro fora movida.